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Fogo e álcool

Os azulejos frios do banheiro são o seu próprio corpo neste momento. A privacidade e proteção ora providenciados pela suíte se transverteram em um forte incômodo. Aliás, nenhum outro lugar consegue lhe oferecer conforto após ter perdido a mulher para o câncer e a empresa para o álcool. Havia acabado de tomar banho, mas sentiu que voltou a suar. No espelho ele observa os olhos vermelhos, as rugas que antes não percebia e, por fim, as mãos trêmulas. Alberto precisa beber para se sentir melhor, mas se fizer isso não poderá comparecer à entrevista de emprego. “Não tenho saída. pensou ele, desistindo. “Nem era um emprego tão bom.

Alberto vai até a sala e se joga em um sofá. Um rapaz aparentando 17 ou 18 anos caminha pelo cômodo em direção à porta. Alberto lhe deseja um bom dia com um sorriso desgrenhado, mas como se não houvesse ninguém mais além dele, o rapaz simplesmente abre a porta e sai. O desprezo do próprio filho lhe fere na alma. Nem ele e nem seus irmãos nunca o perdoaram por ter estado sempre bêbado nos momentos em que sua mãe mais precisou e por não ter parado de beber após ela ter morrido. Subitamente uma ansiedade lhe corrói quando ele lembra que suas economias praticamente acabaram e ele não vai mais conseguir sustentar o que sobrou de sua família e de sua casa. “Preciso deste emprego mas ao se levantar sente a tremedeira e a sudorese aumentarem. Senta-se novamente lutando contra a vontade avassaladora de beber. Praticamente suplica em oração: “Como eu gostaria de voltar no tempo e nunca colocar uma gota de álcool na boca…

Todos sabem que o álcool faz mal para a saúde, mas poucos têm consciência do seu verdadeiro poder destrutivo, tanto para quem bebe, quanto para a sociedade. Entretanto, bebemos freneticamente, num esforço social e cultural para fomentar um espírito sempre alegre e festivo enquanto evitamos a face do alcoolismo. Desse modo, uma pessoa saudável sequer considera parar com a cervejinha no final de semana. Quando ouve a história triste de um alcoólatra, sente que é algo algo distante, que nunca acontecerá consigo ou com alguém de sua própria família. Até que um dia acontece. E poderia ter sido evitado se houvesse simplesmente mais zelo e cautela ao lidar com o álcool. Quantas famílias se desestruturaram? Quantas vidas foram destruídas? Quantos mais prejuízos ainda precisamos sofrer para tratarmos isso com mais seriedade?

Ainda não temos a resposta porque quem bebe muito ou pouco não está interessado em conversar a respeito, apenas entocam a fera e fingem que ela não existe. E isso por si só já é um OUTRO problema. Precisamos iluminar essa caverna nos aprofundando em todos os detalhes desse tema para sabermos como combater esse monstro, e é por isso que escrevo este texto. Por exemplo, poucos param pra pensar que o álcool é um líquido altamente inflamável e seu sabor é horrível. Mas os efeitos são literalmente sensacionais, então bebem para suspender a inibição e aumentar a confiança. Bebem para esquecer os problemas. Bebem para acabar com a tristeza e a ansiedade sem se dar conta de que  transtornos mentais (como esquizofrenia, ansiedade e depressão, etc) são como uma enorme fogueira terrivelmente devoradora e estrepitante. E o que acontece quando se joga álcool no fogo?

Se você disser que muitas pessoas irão beber por toda a vida sem maiores problemas eu serei obrigado a concordar. Por outro lado, outras pessoas são geneticamente propícias a adquirir dependência do álcool e a ciência ainda não descobriu como decodificar esse tipo de genes. Nesse caso, enquanto não conseguirmos detectar com antecedência essas pessoas para alertá-las, precisamos informar toda a sociedade sobre os malefícios do álcool que abrangem mais do que doenças em seu próprio organismo. E se fosse ainda só o caso de algumas horas de alteração no humor, de personalidade ou perda dos sentidos devido ao excesso de bebida em raras ocasiões, o mal seria menor. Bebedeira esporádica pode vir a ser, mas ainda não se trata de alcoolismo. O grande problema é a síndrome da dependência do álcool. Essa síndrome é caracterizada pela priorização absoluta e diária do álcool, onde tudo o mais fica em segundo plano. Até mesmo a própria vida. Por isso o alcoolismo é considerado um transtorno mental de maior preponderância.

De acordo com o DSM-5 (Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5ª edição), a dependência do álcool acarreta o desejo persistente ou esforços mal sucedidos no sentido de reduzir ou controlar o uso de álcool. Ainda a fissura ou um forte desejo ou necessidade de usar álcool (grifos meus). Ou seja, mesmo com tudo dando errado em decorrência do álcool, o alcoólatra não consegue parar de beber.

Imagine um dependente alcoólico numa consulta com um gastroenterologista. Ele está sozinho, porque sua mulher não aguentou mais tanta bebedeira e pediu o divórcio. Seus amigos o evitam. Seus filhos mais ainda. Como perdeu o emprego, o dinheiro encurtou e ele acabou demorando muito para procurar um médico. Finalmente recebe o diagnóstico: “Você está com cirrose hepática”. E o que acontece em seguida? Se não forem tomadas as devidas providências para uma internação imediata, ele volta pra casa e bebe de novo.

Gosto de lembrar de uma cena do filme Hércules, da Disney, em que o herói luta com uma hidra e lhe corta uma cabeça. Duas nascem no lugar. Então ele corta outra cabeça e mais duas nascem. E mais duas. E mais duas. Até que o sátiro, seu treinador, lhe grita na versão dublada do filme: “QUER PARAR DE CORTAR ESSAS CABEÇAS?Voltado para o exemplo acima, qual o problema dessa pessoa? Ele enlouqueceu? Se o álcool está destruindo sua vida em escalas tão absurdas, porque ele simplesmente não para?

Porque ele não pode. Seu organismo está dependente do álcool, quase da mesma forma que uma pessoa saudável precisa de comida, água e ar para sobreviver. E se com muita força de vontade o alcoólatra insistir em não beber, em cerca de apenas seis horas surgirá em seu corpo uma série de sintomas. A síndrome da abstinência do álcool é um conjunto de sintomas e sinais que o alcoólatra pode sofrer com variação de tempo e intensidade, tanto se parar abruptamente com a ingestão alcoólica quanto se apenas diminuir sua ingestão. Alguns experienciam leves incômodos, mas outros amargam choques tão fortes que podem até mesmo vir a falecer.

Os sintomas da síndrome da abstinência do álcool são: ansiedade, náuseas, insônia, tremores, sudorese, desidratação, desorientação, hipertensão arterial sistêmica, insuficiência renal, sangramento digestivo, convulsões, sintomas psicóticos e delirium tremens. Aliás, esse último é um dos sintomas mais fortes e com um potencial enorme de fatalidade. No caso de qualquer desses sintomas estarem em um nível grave e de uma rede social de apoio inexistente (ou seja, se o alcoólatra não tem família ou amigos para lhe ajudar), a internação imediata é altamente recomendada.

Mesmo um alcoólatra que não esteja em um quadro de nível tão estressante ainda pode sofrer de deficiências cognitivas devido ao álcool, ou síndromes demenciais associadas ao álcool. Como eu disse em meu último texto, nossas células são feitas de água e não resistem à absorção do etanol. Por isso, muitos neurônios são mortos. Consequentemente, o cérebro sofre lesões difusas diminuindo a capacidade de julgamento e abstração. O comportamento é alterado e há perda de memória recente e de cognição, que pode variar de leve até grave ocasionando a demência. Em outras palavras, o álcool enlouquece.

Você deve ter ficado estarrecido com essas informações sintetizadas e resumidas que leu até aqui. E eu imagino o seu espanto porque a maioria não sabe nada sobre isso. A glamourização da bebida na propaganda da “felicidade” em um copo gelado vende. O alcoolismo não. Coisas feias e sujas costumam ser escondidas ou varridas para debaixo do tapete.

Geralmente, quando a ignorância sobre o álcool acaba, é normal se perguntar: “E agora? Devo parar de beber com meus amigos? Tenho potencial para me tornar um alcoólatra?

Muito se tem feito para prevenir os riscos e os malefícios oriundos do excesso de bebida. Aliás, o combate ao alcoolismo tem sido considerado prioridade pelo nosso Ministério da Saúde há décadas. Mas a vergonha e o medo da estigmatização do alcoolismo geralmente se sobrepõem à busca por socorro. Soma-se isso à inexistência de critérios para a indicação de uma quantidade de álcool segura a ser ingerida. Foi devido a basicamente esses problemas que surgiram métodos excepcionais para obtenção de informações e rastreamento do uso problemático do álcool chamados instrumentos de triagens. E o que mais se sobressai é o AUDIT.

Elaborado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) o AUDIT (Alcohol Use Disorder Identification Test) é considerado hoje o melhor teste de Identificação de Distúrbio do Uso do Álcool. Trata-se de um pequeno questionário muito rápido e de fácil aplicação e tem apresentado excelentes resultados na detecção do uso nocivo do álcool, tanto no início quanto em fase avançada.

Para quem já está situado em altos níveis de risco no quadro alcoólico, a ajuda mais recomendada é a do grupo dos Alcoólicos Anônimos, que se destaca entre outras organizações destinadas a esse fim, como instituições religiosas e clínicas de tratamento para dependentes químicos. Sua metodologia para o controle e total abstinência do álcool consiste na troca de experiências e a ajuda mútua entre os alcoólatras, e tem sido considerada uma das mais efetivas. É nesse grupo que o alcoólatra recebe a indicação do livro OS DOZE PASSOS, leitura indispensável para todo usuário nocivo do álcool que precisa entender que perdeu o controle da sua própria vida e precisará de ajuda para o resto da vida, pois o alcoolismo não tem cura. Mas desde que se obtenha sucesso na abstinência do álcool, não há necessidade para desespero. Afinal, um alcoólatra pode fazer tudo o que uma pessoa saudável faz, exceto beber. E também deve viver feliz, assim como qualquer pessoa que não bebe, pois as pessoas que não bebem são maioria. Quem bebe apenas faz muito mais barulho.

Enfim, além de todos esses problemas descritos até aqui, entenda que o alcoolismo é uma doença e o alcoólatra precisa da sua ajuda, pois além da doença, ainda precisa lutar contra a exclusão social. Quem não tem problemas com álcool nem imagina o quanto um alcoólatra é marginalizado. Colegas de trabalho, amigos e familiares não o convidam mais para festas ou até mesmo para simples encontros, tanto por preconceito quanto por medo de constrangimentos e escândalos. Portanto, se você não gosta de beber, mas o faz apenas por causa da insistência de amigos ou familiares, saiba que existe uma grande possibilidade de as mesmas pessoas que hoje implicam contigo por não beber acabarem te excluindo de seus círculos caso você um dia se torne um dependente alcoólico.

Poupe o etanol para o carro, para matar vírus e bactérias e apague o fogo com água!

 

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